Pesquisa realizada sobre dez áreas urbanas brasileiras, intitulada “Fragmentação socioespacial e urbanização brasileira: escalas, vetores, ritmos, formas e conteúdos” (https://www.fragurb.fct.unesp.br/ ) revelou as contradições, tensões e formas de articulação entre a lógica espacial pretérita (a centro-periférica) e a atual (a fragmentária), o que, num primeiro momento, levantou a dúvida sobre a pertinência de se manter o conceito de periferia urbana.
Na América Latina, ela se caracterizava pela constituição de um anel de expansão urbana, com predomínio de uso residencial voltado aos estratos econômicos de baixo poder aquisitivo, marcado pelo afastamento socioespacial em relação ao centro e às áreas residenciais de médio e alto padrão e por insuficiências atinentes à presença dos meios de consumo coletivo (infraestruturas, equipamentos e serviços urbanos).
Essa dúvida tem seu lugar, num primeiro momento, afinal se a lógica centro-periférica estava sendo sobreposta por outra, que sentido teria a alusão à periferia urbana?
Os resultados da pesquisa levaram a uma posição do ponto de vista conceitual com base na constatação de duas tendências que contribuem para responder esta indagação.
No que se refere à posição conceitual, firmamos a perspectiva, segundo a qual as novas áreas situadas no anel de expansão urbana, resultantes de investimentos em áreas residenciais de médio e alto padrão (condominiais ou não) e em grandes superfícies comerciais e de serviços (shopping centers, hipermercados, centros de negócios e eventos) não poderiam ser abarcadas pelo conceito de periferia urbana, tal e qual ele foi forjado na América Latina. O conteúdo deste conceito não se institui apenas pela distância desta área em relação às áreas centrais, mas também e, sobretudo, por suas características relativas a todos os tipos de insuficiência, revelando e condicionando no espaço o diapasão das desigualdades socioeconômicas que marcam historicamente as formações socioespaciais deste subcontinente.
Como primeira tendência, consideramos que os novos setores de valorização imobiliária que estão no anel de expansão urbana não podem ser compreendidos como periferia urbana, em que pese estarem distantes dos centros principais e tradicionais, porque são áreas bem servidas de condições para vida urbana e seus moradores ou frequentadores já não frequentam estes centros e/ou dispõem de meios de circulação que minimizam a distância e, portanto, não vivem sua situação espacial periférica da mesma forma que os mais pobres.
Se antes, os interesses do setor imobiliário estavam, sobretudo, nos setores que muitos chamavam de a cidade consolidada, hoje eles avançam sobre as margens dela, buscando realizar a renda diferencial e os lucros imobiliários em elevados patamares, se possível alcançando os níveis de renda de monopólio e a produção de espaços exclusivos em que a interdição é o fundamento da distinção social, razão pela qual esses espaços são muitas vezes murados e controlados por sistemas de segurança e vigilância.
A lógica espacial é nova não apenas porque a morfologia urbana é mais complexa, mas especialmente porque desigualdades e diferenciação sociespacial recombinam-se, comparando a cidade de hoje e a de ontem (diacronia) e cotejando diferentes cidades no período atual (sincronia).
Como segunda tendência, articulada à primeira, observamos o contínuo afastamento socioespacial dos mais pobres ampliando-se e o habitat popular reconfigurando-se, tanto por esse contínuo afastamento como pela acomodação desses estratos sociais em áreas pericentrais em desvalorização e/ou por meio de ocupações ilegais, levando ao aumento do processo de favelização no Brasil.
O mosaico caleidoscópico que se constitui com vetores que alteram a relação entre contiguidade territorial e continuidade espacial, sem que haja coesão espacial, pela justaposição entre espaços residenciais voltados a diferentes estratos socioeconômicos mostra que, independentemente de maior ou menor afastamento espacial, os que há décadas estão sujeitos à “urbanização periférica”, continuam a viver a cidade sob “condição urbana periférica”
Esta condição pode ser apreendida, no plano objetivo, por aspectos como: estruturas espaciais mais complexas; novas formas de separar pobres e ricos numa cidade mais dispersa; tendência de diminuição dos trajetos casa–trabalho–casa numa sociedade em que aumenta a informalidade, a terceirização e a uberização do trabalho.
Tal condição urbana periférica pode também ser observada em seus traços e expressões menos tangíveis: ampliação das desigualdades com mudança dos conteúdos das diferenças espaciais; cotidianos singulares com declínio do tempo livre numa sociedade em que o neoliberalismo é também subjetivação; construção de uma identidade periférica por sujeitos periféricos; reforço da segregação socioespacial e da estigmatização territorial; substituição do poder dos partidos políticos, sindicatos e associações de bairros por movimentos sociais e coletivos menos hierárquicos e mais recortados, segundo condições raciais, de gênero e outras.
Para Saber Mais:
SPOSITO, Eliseu Savério; SPOSITO, Maria Encarnação Beltrão. Sociospatial fragmentation. Mercator, Fortaleza, v. 19, june 2020. <http://www.mercator.ufc.br/mercator/article/view/e19015>.
SPOSITO, M. Encarnação B. (2023/4). Condição urbana periférica sob a lógica fragmentária. Problèmes d’Amérique latine. N. 126, p. 91-106. https://shs.cairn.info/revue-problemes-d-amerique-latine-2023–4?lang=fr