Geocritiq

Fragmentação urbana

Em sentido lato, pode dizer-se que fragmentação se refere à tendência para multiplicação de formas espaciais e grupos sociais distintos embora mantendo contiguidade espacial, produzindo formas estilhaçadas de ocupação do espaço marcadas pela existência de enclaves e centralidades sem continuidade com a estrutura socio-espacial envolvente.

Embora se reconheça o caráter multidimensional do processo, nas Ciências Sociais a pesquisa tende a privilegiar quatro eixos de análise e explicação:

(i) Reestruturação da economia com a globalização e as alterações tecnológicas responsáveis pela alteração na base económica de muitas regiões e na composição do emprego, com forte polarização de rendimentos e nova segmentação espacial do processo produtivo.

(ii) Aumento da diversidade cultural e da complexidade do espaço social produto das transformações no trabalho, na estrutura social e na multiplicação das tribos, no crescimento das migrações e novos padrões de mobilidade, nas desigualdades e no alargamento das escolhas individuais em termos de valores, estilos de vida e padrões de consumo.

(iii) Efeitos espaciais dos fatores socioeconómicos enquanto formas e processos de produção e apropriação do espaço a diferentes escalas. A leitura binária que opõe o centro à periferia perdeu terreno com o aumento da complexidade, no centro e na periferia, devido ao efeito combinado de processos migratórios a várias escalas e de vários tipos, e de formas de intervenção como a regeneração urbana e a gentrificação. Processos que envolvem simultaneamente crescimento e transformação no exterior e recomposição interna das próprias cidades com um grão ‘mais fino’.

(iv) Eixo institucional. O aumento da velocidade e a facilidade de comunicações estendeu a competitividade aos territórios e determinou mudanças nas políticas públicas, no planeamento e na produção urbana ao serviço do crescimento económico e da competitividade; na gestão urbana e nos modelos de governança envolvendo privatização e diversas formas de associação.

Assistiu-se a ações profundas de regeneração urbana e criação de novas centralidades numa tendência para substituir as abordagens integradas dos planos a favor de visões sectoriais e parcelares, deixando a especulação imobiliária produzir uma expansão territorial difusa e fragmentada. Ao mesmo tempo, a privatização na provisão das infraestruturas básicas e do próprio espaço público contribui para acentuar a diferença no acesso a serviços e determinados espaços e para o enfraquecimento da esfera pública, de reunião e confronto da diversidade social.

Na cidade contemporânea, a interdependência entre áreas funcionalmente diferenciadas e polarizadas pelo centro está a ser substituída por relações complexas entre lugares ligados pelos padrões da vida social, a continuidade centro-periferia e a integração pela via hierárquica deram lugar à organização em rede, devido à multiplicação do online e das centralidades, novas áreas de concentração comercial, de serviços e de atividades, que orientam a constituição da centralidade urbana. O policentrismo é, pois, uma das características dos sistemas urbanos contemporâneos urdidos por redes de relações diversas a várias escalas em simultâneo.

Os enclaves, outro elemento identificador, são implantações que introduzem uma diferença brusca em termos funcionais, sociais ou morfológicos em relação ao tecido envolvente, com o qual pode existir contiguidade, todavia sem continuidade. Uma linha importante de explicação da fragmentação urbana emana do estudo dos condomínios residenciais fechados em cuja expansão desempenha um papel relevante a perceção da cidade como espaço de conflito e insegurança. Os condomínios representam um novo tipo de produto imobiliário e nalguns lugares são verdadeiros enclaves securitários.

Finalmente, a apropriação pontual do espaço. Do ponto de vista urbanístico, os grandes projetos de uso terciário, habitacional ou misto, isolados na periferia ou localizados no seio de territórios pré-existentes, têm um forte impacto na imagem urbana, diferenciam-se da organização tradicional em manchas homogéneas e traduzem uma lógica pontual de apropriação do espaço. Podem surgir em áreas de malhas antigas homogéneas, fruto de ações de renovação urbana, no quadro de operações de regeneração de tecidos existentes ou em sítios de artificialização bruta do solo, num padrão algo aleatório, produto das oportunidades no mercado imobiliário, hoje muito dinâmico à escala internacional, beneficiando com facilidades na mobilidade de capitais, empresas, residentes e visitantes.

A emergência da cidade fragmentada não anula, por substituição, a cidade segregada, mas insere-se nela, correspondendo a um novo modelo de organização socio-espacial, produto de realidades novas no domínio social, da apropriação do espaço e da sua produção.

A fragmentação não emana unicamente da separação residencial, mas também do uso do tempo e do espaço no que se refere às práticas de lazer, de compras, de convívio e de sociabilidade favorecidas pela participação em redes de relações descontínuas e plataformas virtuais. Isolamento recíproco e fechamento, indiferença mútua e medo explicam a dessolidarização do entorno no exercício das práticas quotidianas.

O desaparecimento do espaço público enquanto lugar de informação e interação para todos, palco da diversidade e da pluralidade enriquecedora, pode esvaziar a cidade da riqueza social e do confronto produtivo de ideias que sempre fizeram a sua fortuna, um espaço de trocas, não apenas de bens, mas também, e principalmente, de ideias. Será que estamos a caminhar para o colapso da noção moderna de cidade, entendida como espaço unitário, coerente e internamente integrado, porque a perder a capacidade de coesão, ao distanciar-se dos ideais democráticos da liberdade, da igualdade de direitos e da tolerância?

 

Para maior informação:

BARATA-SALGUEIRO, Teresa. Olhares Geográficos sobre a Fragmentação Urbana. In SantosO.; Silva,K.; Malheiros, J. (Orgs.) Geografia Urbana: revisitando conceitos e temas. Lisboa e Recife: CEG-IGOT-ULisboa e Editora Universitária da UFRPE, 2023, 63 – 78.

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